Venho fazendo um estudo que que relaciona os conceitos ligados aos saberes ancestrais à saúde integral (corpo-espiritualidade-subjetividade) das pessoas negras. No que se refere a espiritualidade nada tem me assustado mais que os relatos da dita "indução" ao transe. A quantidade de depoimentos de pessoas que apontam que "fingem o transe", pois se sentem coagidas de alguma forma a ter que dar conta de responder a momentos de manifestação do Òrìsà, pois na sua tradição o Òrìsà precisa se fazer presente quando a Yá espirra (hipérbole), não é brincadeira.
Vejam: como é que a gente consegue determinar que o Òrìsà (força divina), manifeste quando a gente quer (força humana)? Uma coisa é haver processos ritualísticos onde a experiência cósmica pode acontecer ou não. Outra coisa é a experiência cósmica ter hora e data marcada OBRIGATÓRIA a ser cumprida pelo o sujeito. Os rituais criam a ambiência, mas não definem, nem garante transe. Se o Òrìsà é o poder maior ele que compreenderá quando deverá manifestar-se. Não é só uma questão de "concentração". A pessoa pode estar super concentrada e não ter a experiência cósmica. Normal.
A filosofia Òrìsàista já nos apresenta que a possessão africana é algo pontual. Um acontecimento. O transe de Òrìsà na cultura afro brasileira é uma celebração coletiva e mais rotineira. Nesta perspectiva as pessoas não andam "perdendo consciência", "dormindo" ou voltando de um estado onde as percepções foram suspensas - a "inconsciência" é algo raro de acontecer (menos de 1% tem esse acesso). Elas sentem a energia do Òrìsà potente e por ela são conduzidas.
O problema é quando o transe é imposição e não algo em aberto. Problema por quê? Porque as pessoas entendem que não estão tendo a experiência cósmica e na ânsia de responderem as demandas "fingem" para corresponder a expectativa do sacerdote ou sacerdotisa. Outra questão é a turbulência psíquica no sujeito, pois isso acaba o frustando, construindo o sentimento de culpa e desobediência a sua tradição. Mas até que ponto podemos dar conta, na perspectiva espiritual, de corresponder a tradição se os fenômenos do êxtase não são algo a se prenderem e reproduzir a nossa vontade, mas são acontecimentos possíveis apenas de serem sensibilizados pelos ritos? Por vezes a forma como este processo é conduzido acaba por impedir o aproveitamento de outros modos de ter a experiência cósmica que não é fechando os olhos, dando ilá e pondo as mãos para trás.
Minha sugestão aos que passam por esses processos difíceis é que estabeleçam um diálogo aberto e honesto com seus sacerdotes e sacerdotisas. Compreendam, sobretudo, que vocês não são culpados por não terem o transe. Que esse "dormir" que tanto se fala é algo raro e a maioria de nós temos nossa consciência plena (ouvimos, tateamos, cheiramos...). Saibam que essa experiência mística nem sempre acontece. Diga ao seu sacerdote ou sacerdotisa se essa forçação tem produzido algum tipo de sofrimento e como o sofrimento acaba por fragilizar a sua espiritualidade e, por sua vez, a sua relação com o Òrìsà. Temos bons sacerdotes que vão lidar bem ouvindo o Òrìsà que sabe porque a divindade manifesta ou não nos momentos. Sobretudo, não finja nem se force a fazer algo que não é real para você. Acredite: sua saúde mental, física e espiritual é mais importante que qualquer religião.