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Imagem: James C. Lewis |
Oxumaré é o movimento do mundo. Dinâmica que contrapõe a lógica determinada pelo Papa Gregório XIII ao inventar o nosso calendário usual. Cíclico, faz-nos entender que o passado pode se fazer presente para podermos construir dignamente o nosso futuro – intempestivo: rompe com nossa lógica comum de compreender o presente, o passado e o futuro como algo que só avança e nunca retorna. Oxumaré é a potencialidade movimentadora da Terra. A Terra não para, nem a vida.
Em algumas liturgias brasileiras de culto à ancestralidade negra, coloca-se em determinada parte da cerimônia, quando se louva a Oxumaré, uma quartinha com água no centro do templo. Os devotos põem os dedos dentro do recipiente e jogam um pouco da água no chão. Alguns "batem cabeça", saúdam e por vezes entram em transe. Este é o ato que simboliza a abertura da ligação Aiyê-Orum. Caminho de conversa entre as nossas potências ancestrais e os homens e mulheres viventes. Oxumaré é o senhor dos elos. Os elos responsáveis pela manutenção da vida. É o cordão umbilical, o caminho sagrado por onde passaram os alimentos ingeridos por nossa mãe e que nos sustentaram em sua gestação. Oxumaré, como regente dos ciclos, é a força que leva as águas terrenas aos céus em forma de vapor, as transformam em nuvens e as espalha dinamicamente pelo mundo. Quando pesam, caem novamente. Já é chuva irrigando as plantas, dando vida aos solos e estabelecendo as simbioses necessárias para o funcionamento saudável do nosso ecossistema.
O Orixá de todos os movimentos nos ensina a sair do lugar mesmo em meio à tragédia. A imobilidade do corpo pode gerar a putrefação. Temos que ir. Quando a paralisia impera é sinal de doença, depressão. É preciso mudar! Oxumaré é o Orixá do mistério. Pouco se revela no sentido de compreendermos a sua forma de agir enquanto potência ancestral. Seu símbolo maior, as serpentes, as cobras, trazem significados importantes, não se prendendo ao comum temor para pensarmos os ciclos e as mudanças.
Em sua forma de serpente, apresentando-se num sonho, costuma trazer interpretações negativas como falsidade, emboscada, fofoca ou vingança. Trata-se do mito do arquétipo ligado às cobras e sua expressão protetora lida comumente como ardilosa. Não podemos esquecer que esse animal selvagem possui em seu instinto a proteção de si e do seu espaço. Por isso tende a atacar apenas quando se sente ameaçado. Logo, não é ele que gratuitamente lança sua fúria sobre nós. Mas, o homem em ação carente de cuidado que pisa no seu espaço, sem perceber o entorno, nem pedir licença.
As cobras costumam trocar de pele sempre pela necessidade: saúde, clima, condições físicas externas e até a temperatura podem influenciar nesse processo. Em algum momento a serpente sente que seu corpo já não cabe no couro que lhe reverte. Para crescer ela precisa passar por um processo lento e necessário de renovação. Assim sendo, em alguns períodos da vida, terá que trocar a camada de queratina que lhe reverte. Células da sua epiderme já estão mortas. A descamação acontece para outra pele nova surgir. Na estranheza de ver partes suas ficando pelo caminho há também a beleza de compreender uma pele outra surgindo. Essa pele será capaz de lhe acolher melhor, reter o calor e proteger contra as agressões do tempo e do espaço. Assim finaliza o que cientificamente se conhece como ecdise.
É possível debruçarmo-nos numa ecdise humana se pensarmos a pele como as experiências somadas ao longo do tempo. Da infância até o estado atual várias transformações aconteceram. A epiderme não é a mesma, mas o nosso apego a algumas dessas experiências, que não fazem mais sentido para o corpo, nos fragiliza, vira doença autoimune e acaba por ser uma batalha interna difícil de vencer. Nada no mundo permanece estático. Até para haver estabilidade é preciso compreender o quanto de nós já não é o mesmo de ontem. Se prender ao passado, como se houvesse a possibilidade de um retorno perfeito, é ilusão. Sim, a existência é cíclica, contudo já não passeamos por experiências similares da mesma forma do que fora vivido. O eu, o tempo e o espaço são outros.
Os processos de trânsito e de mudança não costumam ser fáceis. Há alguns possíveis de ser curtidos. A dor nem sempre é sinal de fracasso, de perda ou desilusão. É preciso pensar na dor como possibilidade de reconstrução, da abertura para o novo, do avivamento do corpo. A pele imprestável é difícil de sair. Lidemos como essa dificuldade como legitima sensação da existência. No decorrer do tempo e da consciência da libertação a pele morta sairá.
Enquanto não aprendemos a abandonar a velha casa vamos seguindo o caminho tropeçando nos locais onde já sabemos onde os buracos estarão. Não sei se é somente teimosia. O universo tende a nos testar para compreendermos a solidez ou a fragilidade das nossas escolhas. Talvez seja necessário sentir a dor novamente para entender os erros, os equívocos, as decisões falhas e responsabilizarmo-nos por todas elas. Desejo estar atento para saber quando cair no buraco já é um processo de autoviolência. As porradas repetidas sinalizam apego aos hábitos falidos. Quero reconhecer o que já se foi e só permanece como pele morta. Não irei avançar drasticamente se não sinto o conforto necessário. Desapegarei, conscientemente, a cada momento.
A serpente de ouro se alonga, se contorce, forma um círculo e morde o próprio rabo. Oxumaré, em suas escamas, olhos sem pálpebras, nunca os fecham, seu corpo se alonga e se enrola em mim. Abraça-me apertado e com força. Ensina a agilidade, engole meus inimigos, transforma-me em outros, faz com que eu utilize com sagacidade o melhor que há em mim.