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Imagem: Adré Hora |
A senhora do ouro. O ouro dado pelas Yás matriarcas
do candomblé quando Oxum, após longo período atravessando o mar no navio
negreiro, chegou ao Pindorama, resistindo ao martírio. Perdeu o bronze ao longo
do percurso. Ganhou ouro e balangandãs como reverência a sua hombridade e vigor
feminino. As Yás, entretanto, sabiam quem era Oxum, para além do lindo
sorriso...
Senhora cheia de graça que revelou as desgraças que
eu sou no momento em que tomei coragem para me ver no seu abebé. Oxum descama
minhas mentiras, meus segredos, minha podridão. Ela veio dançando até mim e me
fez olhar no seu espelho. Abalou minhas estruturas. Fechei meus olhos para
esconder o que eu escondia de mim. Foi Oxum que me fez olhar para dentro da minha
alma e perceber minhas partes desagradáveis. Colocou-as todas sobre a mesa. Não
consegui fechar meus olhos. As imperfeições se desenharam sobre a pele.
Encardiram minha imagem. Ela me levou para o rio, cantou e disse que eu
precisava me lavar. De dentro para fora...
Oxum na minha vida predomina e erradia doçura. É ela
que acalma minha alma e me mostra o outro lado da ponte. Nunca consegui a ver
apenas como a proclamada "deusa da beleza". E não estou sequer
questionando tal poesia. Minha relação com essa ancestralidade, contudo,
perpassa por outros lugares. Quando sinto sua energia é tempo de estar em
estado de reflexão. Ela põe Obaluaê no colo e o Velho se acalmar, vira criança.
Todas minhas tensões transformam-se em água. Enfrentamentos, militância, posturas
políticas hibernam. Eu viro o menino dos olhos de Oxum. É o tempo de sentar,
respirar, refletir e chorar...
Em outros momentos Oxum toma minhas dores. Mostra-me
o caminho para enfrentar as tormentas. Conversa comigo nos sonhos, ensina-me
feitiços, proteções e ebós. Nunca veio brava, mas sua delicadeza jamais
escondeu a força da correnteza do rio. Ela é forte. Tem o poder do ventre. Tem
o poder da gestação do mundo. Ela se enfeita, se arma e encanta. Seu mister é
mais profundo e são poucos os convidados para na fonte da sua magia navegar.
Dei sorte, pois ela está em mim. Mostra-me o abebé, sem esconder a espada na
outra mão. Estratégica, derruba dez mil homens sem ir à guerra. Afoga-os em
suas águas e derruba o mito da futilidade da beleza.
Oxum é o rio profundo. Aquele rio ao qual
mergulhamos e não podemos mais voltar. Não da mesma forma. Oxum me chega como a
potência ancestral da subjetividade. Domina as emoções, os sentimentos, a
felicidade, as amarguras, as angústias e tristezas. É responsável principalmente
por tudo aquilo que queremos esconder. Amplia nossa sensibilidade artística. É
a potência das artes. A arte que ressignifica a vida. Por isso não é apenas
beleza. Ela dá cor ao mundo vazio. Transforma as subjetividades em estéticas.
Pinta o Yawô e estabelece seu elo com os segredos dos outros mundos.
Em seu domínio das águas ensina a brandura como
estratégia, pois conduz tudo a sua maneira sem precisar enfrentar a adversidade
agressivamente. Debate com mansidão, discussão calculada, uma palavra ou outra
sinuosa, mas nada que revele seu real intuito. Quando se pensa que ela não
sabe, a moça já está longe. Sua doçura pode ser só ilusão. Pois noutros pontos
do rio, entretanto, há águas fortes, bravas e geladas. A queda da cachoeira
pode matar.
Como mulher não se explica, pois é uma e é muitas.
Evoca o poder feminino das múltiplas atenções, da concentração e da dinâmica.
No corpo masculino revela aquilo que muitos homens tentam esconder: a sua
capacidade de estarem em paralelo ou fora da guerra cuidando, sendo afetuoso,
expondo sua beleza e sensibilidade que não se conflita com o ser homem.
O pensamento africano em suas origens não lida bem
com dicotomias. Ele dar espaço para as pessoas olharem para si e perceberem-se
para além do projetado. Oxum é a potência que traz a vidência. Enxerga para
além dos que os olhos humanos podem ver. Não é atoa que fugimos dos seus
aspectos mais profundos. Enfeitamo-la demasiadamente para que sua beleza nos
cegue como num canto da sereia e a gente não acesse os seus mistérios ocultos.
Oxum com plena doçura vem e nos desestabiliza. Ela
testa nossa autoconfiança. Com um sopro revela se é força ou é ego. Não há quem
resista a tal encantamento. Faceira, passeia entre os homens agindo conforme a
sua vontade. Deles não é serva. É sempre senhora. Há, entretanto, quem se
engane... Mas ela nunca se engana.
A mãezinha nos cuida bem e reúne os destroços dos
seus filhos. Essa potência ancestral nos subsidia a superar as nossas dores
emotivas, as perdas dos que se foram e o medo da solidão. Ajuda-nos a ressurgir
quando, depois do término de uma relação conturbada, parecemos que não mais
poderemos levantar. Oxum cuida dos nossos afetos, do coração partido, das
decepções e controla o nosso orgulho. Potência ancestral dos femininos é
indispensável de ser cultuada pelos homens e mulheres com perfil de
enfrentamento, pois sua malemolência nos traz equilíbrio.
Oxum nos dar o poder de chorar, de desaguar, de
lavar nossa alma quando o rio escapa pelos olhos. Sua maior beleza está em
revelar para nós a tragédia que também somos. Deste modo, podemos deixar de
apontar os tropeços, as falhas, a rebeldia e toda incoerência do outro e
passarmos a cuidar melhor das nossas lacunas. Revela ali, na frente do espelho,
a nossa imundice. Não pretende nos humilhar. Quer apenas desnudar quem somos.
Pois ninguém dar conta de resolver sozinhos as suas incoerências. Por que então
simplesmente apontar a dos outros?
As águas de Oxum não lavam apenas a nossa alma
metafísica. Lava nosso corpo integralmente, incluindo todos os aspectos da
nossa, por vezes, conturbada subjetividade. Ao mergulhar no rio, e deixar seu
Orí emergir, entregue a sua cabeça para que ela a coloque dentro do seu ventre
e lhe devolva o equilíbrio necessário para bem seguir. Não, Oxum não irá te
transformar em outro ser. Ela irá pontar os caminhos para você melhor construir
este outro ser que você deseja ser.
Olhar o abebé de Oxum é nos desafiar a ir ao âmago
da nossa existência e transcender as superficialidades. Olhar o Abebé de Oxum é
olhar com todo medo, mas enfrentando todos os aspectos de quem somos,
principalmente aqueles que desejamos esconder. Olhar o abebé de Oxum é ter
coragem de assumir nossas incongruências, nossas falhas e temores e, através
desse reconhecimento, buscar construir-se como um ser humano cada vez melhor
para si e para o mundo.
A so orí buruku di orí re
Ela diz à cabeça má que se torne cabeça boa.
Ela diz à cabeça má que se torne cabeça boa.