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Imagem: André Hora |
A morte. Implacável morte. Mistério profundo da nossa existência. Nela se finda a angústia da vida. A agonia impulsionadora do nosso ser. O saber funde-se ao cosmo. Eleva-se ao Orum. Não se perde, vira ancestralidade, memória. Instaura-se no corpo coletivo. A intersubjetividade bioancestrálica carregar-se-á de manter o ser vivo. Manifesta-se corpo nos corpos. A morte é o mistério. É um mito. Alegoria para a transformação.
Há uma poética de imagens metafóricas que remetem às funções das yabás na condução das yawôs nos cultos afro-brasileiros aos Orixás. Oxum as recebe e é a responsável por todos os preparativos litúrgicos: os ebós, os banhos, os adereços, as vestes e a pintura. Iemanjá é o ventre. O acolhimento. Aquela que gesta e mantém sob sua proteção a noviça. Na iniciação (o parto de Iemanjá), Oxum entrega a yawô para Nanã: aquela que será responsável pela proteção, cuidado e resguardo da noviça até a sua partida. A yawô precisa morrer para nascer e transcender seu caminho à morte.
Os conhecimentos profundos contidos no pensamento africano e afro diaspóricos são elos com os processos sistêmicos da natureza:
Nanã é a transição entre a terra, os rios e o mar - eles dançam num belo encontro. É a lama do mangue. É o mangue. Onde vida e morte se relacionam numa simbiose contínua, equilibrada e cíclica. Neste ecossistema, berçário de peixes, moluscos e crustáceos, compõe a lama a partir da decomposição de materiais como folhas, restos de animais, areias trazidas pelo vento e correntes marinhas, tendo na sua superfície matérias orgânicas que servem como alimento para sua fauna. No mangue morte é Vida. Vida é morte. Por isso, transformação é a palavra mais adequada para definir este processo. A morte dos seres faz parte do equilíbrio do universo. Não há tormento pela inevitável finitude. Lembremo-nos dos diversos mitos que falam da criação homo sapiens a partir da lama, do barro, da argila.
Não aprendemos a nascer, tal qual não aprendemos a morrer. Ambos são acontecimentos cuja consciência do vivente não guarda na memória. O nascimento é a celebração. A morte, uma tragédia. Herdamos da cultura cristã o medo do desconhecido (ou do inferno) e da provável finitude. Não tratamos o último sopro como parte da vida. Para maioria dos viventes a morte é temida. “E o SE? E o NADA? E o que FICA?”
O medo da morte é o desejo pela vida, com todo conforto ou desconforto provocado por ela. Morrer tem peso, lamentação e tristeza. A cada aniversário caminhamos para o inevitável. No nosso corpo o aspecto do desgaste que nos fez vencer ou perder. Será por isso que o ocidente costuma ver seus mais velhos como símbolos da decadência - os próximos do fim - e não referências de sabedoria?
Em África chamam-se também de Nanã as sacerdotisas do culto à Vodun Mawú, as anciãs: aquelas cujos passos (e seus tropeços) ensinaram-lhes a alquimia das dores e a cura. Seu colo é o aconchego. A força da sabedoria das senhoras matriarcas. Potência ancestral responsável pela manutenção dos valores, da ética, da integridade e moralidade. É o sagrado feminino que acolhe o coração dos homens e das mulheres sofredoras. O elemento bioancestral ao qual recorremos para ajudar os nossos mais novos a lidar com as suas falhas no caminho.
Nanã nos presenteou com a consciência de que vamos morrer. Com isso somos capazes de ressignificar a existência. A morte é um processo cotidiano e não apenas aquele último suspiro. Ela conduz os nossos términos: da infância, da adolescência, dos namoros, da saída de casa, do emprego, da relação com os filhos, do casamento, da fase adulta, das verdades ultrapassadas... Aquilo que finda não volta. Perde-se no espaço sem direito a ressuscitar no terceiro dia. Não haverá nova infância. Mesmo o romance retomado já é outro. A água do mesmo rio já não é a mesma a cada novo mergulho.
Nanã convida-nos a celebrar a vida e cuidá-la a todo instante. Revela o mistério não findado do sujeito, pois nos ensina a construir, através do nosso legado, a memória, repassada pelas gerações. Dar-se aí a importância de pensar nossas ações, reflexões e produções como fruto dos descendentes.
Precisamos aprender a não medicalizar a morte. A consciência da finitude nos orienta a respeitar cada momento da existência. Não apenas a nossa, mas a do outro, a da comunidade, da fauna e da flora.
Celebremos as Nanãs dos nossos terreiros, das nossas famílias, das nossas escolas; as Nanãs das ruas, as Nanãs griôs, as Nanãs que somos. Todas dignas de reverências. Dominam a morte ao nos apresentar o bem estar na vida. Este é o processo de retomada do autocuidado: onde a consciência da finitude terrestre nos propõe tratarmo-nos da melhor maneira possível.
Em algum momento perceberemos a vida e a morte como um contínuo ciclo. Que possamos estar entregues as transformações as quais estamos inevitavelmente imersos, descobrindo outros sentidos para finitude e, no último respiro, encontrar conforto nos braços da magnífica potencia ancestral Nanã Buruku.