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Imagem: Adré Hora |
Nos itans
afro-brasileiros conta-se que Ogun é o Orixá guerreiro que nunca perde a
batalha. Homem forte, bravo e bélico; é aquele cujos inimigos serão sempre
derrotados. Dentre tantas histórias vitoriosas, convido-te, caro leitor,
querida leitora, a pensarmos juntos sobre como estes itans podem apontar interpretações
capazes de nos mostrar a importância de reconhecer as nossas limitações e
fragilidades.
Dentre tantos, escolhi
um que contarei resumidamente e servirá para aprofundarmos sobre a figura do Ogun guerreiro impiedoso:
Conta-se
que Ogun, após viajar por longos anos, resolve voltar a sua terra para abrandar a
saudade do seu estimado filho. Chegando ao lugarejo ele fala com alegria com
todos, mas as pessoas não respondem as suas saudações. O lugar está em um
ritual onde a comunidade deve permanecer em profundo silêncio e, em hipótese alguma,
deverá emitir uma palavra sequer. Sem lembrar-se deste ritual, Ogun sente-se
totalmente furioso pelo desrespeito, retira a espada da bainha e começa a
decepar a cabeça dos aldeões. Ouvindo os gritos das pessoas,
seu filho que estava longe, corre em direção a aldeia. Chegando lá grita o nome
do pai e explica-lhe o que estava acontecendo. Ogun arrependido pelo que
fizera, chora em profunda tristeza, crava sua espada sobre a terra e desaparece
em uma barulheira assustadora.
Este Itan apresenta
alguns traços da dita “personalidade” de Ogun. Há quem o utilize para
justificar ações agressivas de alguns filhos deste Orixá. Mas, saindo do
problemático arquétipo, quais outras questões esta narrativa pode nos fazer
refletir?
Ao longo da história da
nossa civilização o homem foi construindo a imagem do protetor por conta da sua
capacidade biológica de, através da força muscular, conseguir enfrentar alguns
perigos, como aqueles ocasionados pela invasão animal. Com o advento das organizações sociais mais complexas, essa força bruta foi sendo utilizada não
apenas para lidar com a natureza, mas também contra o próprio ser humano.
Mulheres em diferentes sociedades passaram a assumir um lugar de “fragilidade”,
enquanto os homens eram os "viris". A construção cultural definiu estes papeis de
forma homogênea dando pouco espaço para compreendermos a força bruta feminina e
a fragilidade masculina.
OGUN, O ANCESTRAL DA GUERRA. Òrìsà que vence demandas. É também aquele que nos ensina a agir com temperança e fragilidade nos momentos em que tais virtudes se fazem necessárias. Se por um lado essa potência nos ensina a agir, avançar e não paralisarmos no caminho, por outro, em seu ponto de equilíbrio, ela propõe olharmos as situações com temperança, pois passos impensados podem ocasionar resultados decepcionantes.
O fato de sermos filho de Ogum não nos dá o direito de atropelar as pessoas. A força do guerreiro Ogum deve nos orientar a pensar em como nos relacionarmos na nossa comunidade e na vida cotidiana de modo a sermos aqueles que irão impulsionar o avançar das situações que se colocam estagnadas.
De maneira alguma a espada de Ogum deve ser a espada que utilizaremos para decepar o outro. Tal ação imediata revelaria apenas uma fragilidade que precisa ser cuidada. A proteção dessa ancestralidade serve-nos como motivação para construirmos os novos caminhos do culto, as tecnologias que irão ajudar o progresso do mundo e a pensar estratégias de sobrevivência em meio à silenciosa guerra que paira entre nós.
Escutar é importante.
Escutar é o melhor movimento. Escutar é agir. O silêncio se faz mestre para a escuta ser
ensinamento. Que esta escuta vá além do ouvir palavras, mas que possamos
escutar de modo sensível. Escutar aquilo que é dito no silêncio inquietante.
Ultrapassar os arquétipos
aprisionadores é importante. Ainda que a imagem do Ogun guerreiro tenha ganhado
força na diáspora, precisamos pensá-lo como uma potência transcendente em nós.
Potência esta não associada apenas a uma guerra do campo de batalha, mas a
força capaz de nos impulsionar a enfrentar as nossas demandas cotidianas.
A espada pela espada só
decepa. Para fazer justiça é preciso mais que lâmina afiada e ódio. Na luta
pelos nossos ideais devem existir elementos capazes de justificar dignamente o
nosso suor. Matar ou morrer não é um lema, trata-se do discurso que
enfraquece o ideal. Mesmo na guerra o
outro deve ser pensado. O guerreiro de hoje, incapaz de pensar nas conseqüências
dos seus atos, apenas semeia injustiça. A armadura não é mero metal; sobretudo
é a consciência. Já não podemos ser o Ogun de antes.
Nós, filhos de Ogun na nova era, devemos pensar em vencer a nossa batalha introspectiva antes de avançar contra aquele visto como inimigo – precisa haver espaço para vencer a batalha pelo pacifismo.
Nós, filhos de Ogun na nova era, devemos pensar em vencer a nossa batalha introspectiva antes de avançar contra aquele visto como inimigo – precisa haver espaço para vencer a batalha pelo pacifismo.