Joana, ekedi de Iansã, está
no seu ilê axé. Embeleza-se para poder ajudar o ritual acontecer da melhor maneira
possível. É festa da Orixá da casa. O
ritual começa e com toda alegria o xirê é cantado. Chega o momento de "virar"
a mãe de Santo e convidar Iansã para se fazer presente. Iansã se manifesta e
dança seu ilú. A cantiga para e ekedi Joana, cumprindo sua função, vai enxugar
o rosto da sua mãe Oyá. Ao passar o pano
na face de Iansã uma energia incontrolável lhe toma. Tudo se apaga. Iansã
manifesta em Joana. Todas
as pessoas do terreiro ficam perplexas. Um babalorixá imediatamente leva a então
"ekedi" para dentro do sabaji.
A vida de Joana não será mais a mesma...
A festa termina, Joana vai pra casa atordoada
com tudo que aconteceu. Mal dorme. Noutro dia é chamada para conversar com a
sua yalorixá e alguns filhos do terreiro. Recebe sua sentença: terá que sair da
comunidade para não sujar o nome do ilê e da mãe de santo, pois todos sabem que
dentro do candomblé ekedi não roda no orixá. A partir daquele dia Joana será
mal vista, apontada e virará chacota entre seus irmãos candomblecistas.
Para alguns, ela ter
rodado é um passo para futuras "marmotagens". Para outros se trata do
resultado de um processo iniciático mal feito. Dentre comentários e sugestões
há uma pessoa em sofrimento que não está sendo pensada com generosidade.
Essa história fictícia
é baseada em alguns casos reais. Relatos desse tipo têm nos chegado com certa
frequência. Observo que em situações como esta mais do que pensar no que
fazer é preciso pensar no que não se deve fazer.
Não dar para apontar o
dedo para a ekedi ou ogan, colocá-lo em um lugar inferior e culpabilizá-lo por
um "equívoco" que não é da sua responsabilidade. Não dá para sair chamando
a yalorixá de irresponsável ou ainda compreender o processo por ela realizado
como falho. Não dar para fazer qualquer tipo de julgamento sobre esse processo
sem entender as complexidades nele envolvidas.
Sobretudo, precisamos
diante de um acontecimento tão delicado, ter uma relação de empatia. Acolher
essa ekedi ou ogan, pois suas emoções também estão perturbadas. Até então ele
ou ela se compreendia como alguém que jamais iria entrar em transe. De algum modo,
o universo a colocou em uma situação adversa aquela que prega os dogmas
candomblecistas.
A iniciação para
pessoas “propícias ao transe” (yaôs) diferente para pessoas “não propícias ao
transe” (ogans e ekedis) emergiu de uma necessidade social de haver aqueles
que, seguramente, permaneceriam sempre de olhos abertos, atentos as
fiscalizações da casa grande e possíveis invasões da policia. Nossos
antepassados acreditavam que o transe poderia ser evitado com o não adoxo. Tal
teoria tem se mostrado não tão segura já que há casos conhecidos de ogans e
ekedis (com e sem adoxos em seus processos) que entraram em transe.
Não desejo debater o
mérito deste processo ritualístico e se o adoxo é ou não necessário. Cada
sacerdotisa sabe o porquê da utilização ou não deste fundamento ao confirmar um
ogan ou uma ekedi. A contextualização histórica serve para compreendermos como
não há uma verdade absoluta na condução destes rituais. Logo, nossa postura
perante acontecimentos sensíveis, deve ser de acolhimento e jamais de
julgamento.
Cabe a ressalva de
estarmos lidando com um ogan ou ekedi que passou pela experiência do transe e
não com pessoas que, para obterem “lugares de prestígio” dentro do candomblé,
utiliza-se de meios inescrupulosos, na tentativa de justificar certa acessão a
cargos como babalorixá ou yalorixá. Infelizmente, muitos desses falsos
sacerdotes estão entre nós. A estes cabe o nosso repúdio e afastamento, sem nenhuma
porta para que seu ato de demérito para com a espiritualidade, religiosidade e
comunidade ganhe força.
Este texto é um convite
para que tornemos o candomblé e as comunidades de terreiro um espaço de
acolhimento e afeto. Os problemas, desencontros e equívocos irão acontece.
Nosso papel como cultuadores de orixá e sujeitos que buscam uma transformação
enquanto seres humanos, através do culto a ancestralidade, é a de agir sempre
com acolhimento, generosidade e compaixão. Precisamos sair do apontar de dedos
para a proposição de soluções. Colocar alguém no escanteio da religião por
acontecimentos adversos é transformar os terreiros em espaços de segregação,
julgamento e adoecimento ao invés de um espaço da coletividade, do cuidado e do
respeito.
Por vezes essas
discussões pouco acontecem nas comunidades, entretanto, quando algo do tipo
surge, posições são tomadas, mas nem sempre essas posições pensam de um modo a
reforçar a importância da união comunitária, pelo contrário, fragiliza mais
tais espaços.
Com estes escritos não
busco dar respostas exatas. Proponho a reflexão. Na medida em que nos
permitimos acolher o outro em suas dificuldades e turbulência, agindo com
generosidade, humildade e respeito, melhor será a lida para com a resolução dos
nossos problemas e conflitos.