O negro no Brasil, para melhor desenvolvimento da comercialização escravagista,
foi reduzido ao status de “coisa”. A desqualificação como sujeito possuidor de
alma o fez ser tratado, pela sociedade branca (religiosa), como um “objeto
animado” que apenas servia para servir.
A escravidão de outrora construiu um pensamento
coletivo que inferiorizava a humanidade dos sujeitos negros, por conseguinte, a
associação com o macaco, é uma das práticas mais comuns entre os racistas.
Hoje, ainda sofremos com o resultado desse elaborado pensamento colonizador.
Saímos de uma senzala concreta para adentrar em uma senzala contemporânea. O
espaço de segregação deixou de ser explícito para ganhar formas camufladas diversas.
Brancos e negros atuam na sociedade ocupando lugares evidentemente diferentes.
O racismo se especializa, torna-se sofisticado e ganha outras configurações
dinâmicas e mutáveis.
Nem sempre temos força
psicológica e emocional para lidar com os impactos históricos, sociais e
cotidianos do racismo. Tais impactos recaem sobre nossas subjetividades nos
adoecendo física e psicologicamente.
Abalados, além das dificuldades encontradas na segregação da senzala contemporânea, temos que lidar com o nosso mundo subjetivo enfraquecido. Sozinhos, torna-se mais difícil conquistar alguns espaços.
Juntos somos (ou
deveríamos ser) mais fortes. O candomblé também deveria constituir-se como
espaço de acolhimento, de cura, de fortalecimento do sujeito que já recebe a
violência da segregação da senzala contemporânea. Entretanto, quando dentro
desse espaço se decide reproduzir um modelo colonizador, aquele que deveria ser
o nosso lugar de fortalecimento, revela-se como espaço que enfraquece. O ambiente
que carece de ser, em contraposição, o quilombo contemporâneo, por vezes, reproduz
o modelo “casa grande x senzala”. Onde então o povo negro poderá encontrar
refúgio?
O culto afro-diaspórico
aos Orixás no Brasil (em algumas casas, mas encontramos exceções) vem repetindo
o dogma cristão de que para se aproximar do divino é preciso sofrer,
humilhar-se e submeter-se a situações vexatórias. Respeito deixa de ser algo
relacional, dialógico, entre as partes envolvidas. Passa a ser sinônimo se
subserviência. Na implementação desses valores distorcidos, alguns se sentem no
direito de atropelar a subjetividade do outro sob a guarda do “esta é a
tradição”. Com isso, a “tradição” vai se moldando em aspectos de perversidade.
A violência, a subserviência e humilhações configuram a dita “tradição” – seria
esse o desejo dos Orixás?
Não são poucos os
depoimentos de pessoas que passaram por experiências de
violências dentro dos terreiros. Uma tradição que não se repensa gera equívocos
que transforma aliados em subordinados. A religião passa a ser fundamentalista
e a espiritualidade subjaz a um plano medíocre. Não nos sentimos partes, mas à
parte. Não pertencemos ao círculo, ao xirê, a comunidade. Sentimos uma imensa
solidão em um espaço que, a priori, pretendia ser de reconstrução familiar. Num
ambiente em que o pensamento não se faz presente, a tendência é que a
ignorância impere. Preferimos a ignorância à autocrítica. Preferimos o orgulho
ao cuidado. O poder e a desenfreada hierarquia atropelam os indivíduos. Esta é
a maquina de solidão candomblecista. Quantos de nós estamos ocupando os
terreiros sob o discurso de que estamos ali apenas por conta dos nossos Orixás?
Esquecemo-nos que cuidar do Orixá é cuidar da gente. Nenhum Orixá estará
vibrando se seus filhos estiverem destruídos. O candomblé não é espaço de
cuidar apenas de uma divindade que está longe, nos céus. Candomblé é lugar de
cuidar dessa potência Orixá que está em cada um de nós. Um cuidado mútuo que
precisa ser fortalecido a cada dia.
Por que não escolhemos o
afeto como guia para a nossa tradição? Porque é tão difícil entender o
candomblé como um espaço de acolhimento do outro, desse outro negro, desse
outro eu, desse outro que sofre os impactos desta senzala contemporânea? Desse
outro que deseja ter suas dores acolhidas, tratadas e encontrar no afeto dos
irmãos e dos Orixás força para enfrentar as mazelas do mundo.
Estamos nos boicotando. Cada vez mais a
religião vem sendo questionada. O pensamento da dor como o grande elo entre
Deus e os homens é um paradigma ultrapassado. As pessoas já conseguem
compreender que estar no candomblé é uma escolha e não uma obrigação. Com isso,
a tendência é que este espaço que tende a ser “tradicionalista”, no sentido
pejorativo, um espaço que nega as subjetividades dos sujeitos em favor da
normatização da tradição, enfraqueça-se e se esvazie.
Estamos perdendo a
oportunidade de fomentar os terreiros como um espaço de união, de cura, de
afeto, de cuidado, de solidariedade, de respeito, de fortalecimento, de
aprendizagem, de repensar a nossa existência a partir de uma lógica
não-europeia e dando espaço para que a violência, as humilhações, a subordinação,
a fofoca, as intrigas, a briga por poder, o luxo e tanto outros aspectos
negativos nos separe.
Tudo que acreditamos ser
importante dentro do nosso culto pode ser repassado com leveza e profundidade. A
iniciação e os resguardos decorrentes transpõem para o sujeito a construção de
um vínculo íntimo com o Orixá, com sua ancestralidade e o cuidado e respeito a
esse processo deve incentivá-lo a vivenciar esta experiência com motivação.
Construir uma boa relação com nossos mais velhos simboliza um respeito à
ancestralidade ali manifesta e a sabedoria adquirida ao longo do tempo.
Conhecer o contexto histórico do nosso culto faz com que a liturgia seja
realizada de forma mais coerente. Pensar na hierarquia muito mais como um
sistema organizacional do que de “altos e baixos”, “melhores e piores”, “quem
pode mais e quem pode menos” faz com que nos aproximemos dos nossos e saibamos
que o terreiro é o lugar de todos – com cuidado e respeito sempre!
Amar o Orixá, entendendo
que ninguém tem mais Orixá do que outro, independente dos cargos, poderia
conduzir melhor as relações nos nossos templos sagrados.
Parece, entretanto, que conduzir tais
ensinamentos com ternura é algo que enfraquece o “poder da tradição”. O rigor,
a opressão e superioridade se apresentam como as melhores estratégias de
ensinamentos. Um grupo precisa diminuir o outro para que o ciclo tradicional
não se encerre. Lembremo-nos de Frantz Fanon que nos diz em “Pele Negra,
Máscaras brancas” (2008): “Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse
para sempre a servidão do homem pelo próprio homem. Ou seja, de mim para o
outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele
se encontre. ”
Quando a espiritualidade
não é libertadora corremos o risco de na sombra dos oprimidos nos comportamos
como opressores. A incongruência já pode ser percebida quando pensamos o
contexto em que o candomblé nasce e ainda assim ele não é libertador. Pior, não
dar espaço para o acolhimento pleno do povo preto, colocando em nosso povo
sentimentos de solidão em meio ao xirê. Percebo pessoas vivendo uma desilusão religiosa,
pensando em repetir com seus futuros mais novos o que seus mais velhos os fazem
sofrer hoje. Eis os oprimidos, em um espaço religioso, pensando em serem os futuros
opressores.
Entender o terreiro como um espaço de
acolhimento do povo preto evitaria que cometêssemos alguns equívocos em nome de
um tradicionalismo que, por vezes, demostra ser perverso. Poderíamos pensar
nesse espaço como o lugar da espiritualidade que não está separada do cuidado
do corpo físico. O povo preto precisa entrar nos terreiros e sair melhores,
revigorados, com desejo de enfrentar as dificuldades da vida cotidiana.
A casa dos Orixás deve
ser a nossa casa. Nela podemos construir
estratégias que nos ajudem a superar o racismo diário e entender que o
pertencimento, a comunidade, o cuidado, o respeito e o resguardo de valores que
nos fazem sermos seres humanos melhores não dão espaço para o sentimento da
solidão e faz-nos compreender a importância da energia coletiva, dentro de cada
um de nós, tão necessária para enfrentar as mazelas racistas do mundo.