Por: Van Sena
Sempre digo aos meus
próximos: “não sou do candomblé, estou no candomblé. Eu sou mesmo é do orixá”.
Essa sentença me orienta a lidar bem com meus vazios de verdades. A verdade
para mim não existe. Tudo é relativo. O máximo possível a se alcançar são
acordos coletivos estabelecendo uma comunhão de ideias aproximadas a respeito
de um determinado conceito.
A religião não ocupa um
lugar de privilegio na minha vida. Entretanto, ela ocupa um lugar de tensão, pois me tira do lugar de conforto: tenho lidado com a experiência
do conflito constante entre os aspectos ditos “racionais” e os fenômenos
espirituais. Com a espiritualidade encontro-me com acalanto.
Já a religião se apresenta cada vez mais confusa, incoerente e lacunosa.
Escolher às vezes é um
problema. Se pudesse escolher puramente eu vivenciaria o candomblé à
distância; como uma manifestação religiosa importante; fenômeno sociocultural,
belo e estético. Então, o que me faz estar no candomblé? Meu amor profundo pelo Orixá.
Meu chamado à iniciação
por Orí foi intenso. Cheguei ao candomblé de forma bonita, mas ao longo do
tempo fui percebendo e compreendendo que a beleza aparente, visível de fora, não
era tão bela ao me aproximar. Cada passo dado vinha com paradoxos: ao tempo em
que o Orixá me convidava intensamente, as pessoas, com seus comportamentos
equivocados, afastavam-me da espiritualidade.
O candomblé possui
diversos vícios ligados ao modo como a tradição se organizou. As pessoas, por
tantos motivos, não se dispõem a criticar esses vícios e repassam os equívocos
sustentando, em meio ao culto aos Orixás, desrespeito, autoritarismo, descuido
com as pessoas, vaidade e arrogância.
Não me interessa
determinar a verdadeira essência do Orixá. Eu busco conhecê-lo para além de um
lugar de investigador da verdade. Desejo buscar “o que ele é” para poder
melhor me jogar nesse mar de transcendência e ancestralidade, fim dos meus
limites enquanto ser humano, começo do meu reconhecimento de sujeito limitado
perante os mistérios do universo.
Se por ventura eu
encontrar “o que é o Orixá” saberei, contudo, tratar este de um encontro
particular, singular, não replicável, entre eu e minha percepção de uma
possível concretude do “saber o que é o Orixá”.
Vale ressaltar: as minhas
incertezas não abrem necessariamente espaço para o Orixá ser qualquer coisa.
Acredito plenamente: o Orixá não é qualquer coisa. Mais do que saber o que ele
é, sinto necessidade de saber o que ele não é: não é santo, não é capeta, não é
espírito, inimigo, vingativo, nem nenhum tipo de energia truculenta.
A religião tende a não
acolher as singularidades das diversidades dos corpos (corpos integrais:
corpo-mente-espírito-subjetividade). Ela visa coletivizar as subjetividades
gerando, com isso, formas duras de violência.
Eu me sinto violentado
pela religião quando a hierarquia dá lugar às vaidades, à falta de cuidado e educação e não escuta a minha voz, demandas e questões, não para supri-las, mas
para saber que elas existem.
O culto a Orí tem feito
transformações significativas na minha forma de ser-estar no mundo e, por sua
vez, de ser-estar no candomblé. Ele, Orí, me orienta a vivenciar o axé
reconhecendo primariamente as minhas falhas, lacunas e imaturidades sem,
entretanto, deixar de lado as manifestações de resistência. Estas tendem a
contribuir a essa religião que tanto se recusa a pensar seus equívocos e, por
isso, ao contrário da sua filosofia coletivista, será transformada pela tensão
dos indivíduos.
Meus orixás sempre se
mostraram maiores do que a religião. Eles aceitaram embrenhar-se em terras
tupiniquins, serem reinventados, adentrar corpos não-negros, vestir outras
roupas, receber novas histórias, fundamentos e fusões. Quantas mudanças os
orixás vêm aceitando passar e só o ser humano ainda não aprendeu a lidar com as
mudanças dinâmicas da existência.
Este relato pode ser um
encontro com processos também vivenciados por outras pessoas. Desejo, pois,
poder contribuir mostrando minhas fragilidades e desencontros; escancarando as
minhas rachaduras e fortalezas, pois se por vezes parece que a relação com a
religião é confortável para muita gente, para mim e para outros pode não ser.